domingo, 2 de novembro de 2008

A fórmula russa contra o Alzheimer

Fonte: REVISTA ÉPOCA


Por que um antialérgico dos anos 80 é a nova esperança no combate à progressão da doença

marcela buscato



O remédio Dimebon é um velho conhecido da indústria farmacêutica. Aprovado na Rússia em 1983 para combater reações alérgicas, foi usado até o início dos anos 90, quando deixou de ser fabricado em razão da concorrência de medicamentos mais modernos. Hoje, não é possível encontrar a droga em nenhum país. Talvez por pouco tempo. O Dimebon ensaia um retorno triunfal. Um estudo divulgado no Lancet, uma importante publicação na área médica, sugere que o antigo remédio russo pode retardar a progressão do mal de Alzheimer.





"Se esses benefícios forem comprovados, o Dimebon será a primeira droga a agir diretamente nas causas da doença, e não só nos sintomas", afirma o neurologista Renato Anghinah, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O Alzheimer, doença que afeta 18 milhões de pessoas no mundo (1 milhão só no Brasil), é a principal causa de demência.





De forma progressiva, destrói os neurônios e apaga as memórias, a identidade e a personalidade dos doentes. Pode transformar uma pessoa afável em teimosa e agressiva. Faz a capacidade intelectual do doente minguar à medida que avança. Primeiro são os lapsos de memória: a pessoa perde objetos guardados nos lugares de sempre. Aprender informações novas se torna um desafio. Logo as palavras começam a faltar, o paciente alterna momentos de lucidez com confusão e não consegue fazer atividades rotineiras sozinho.





A indicação do Dimebon para tratar o Alzheimer ainda está em fase de pesquisa. Mas o remédio já é o centro de um acordo entre a Pfizer, um dos gigantes da área farmacêutica, e a Medivation, a empresa americana de biotecnologia que descobriu o novo potencial do Dimebon. Por US$ 725 milhões, a Pfizer poderá ajudar nos últimos estudos com a droga e levará parte dos lucros com a venda do remédio.





A expectativa é que o Dimebon evite a morte de neurônios saudáveis pela doença



A aposta de uma grande empresa farmacêutica contribuiu para aumentar a expectativa em torno de um possível novo tratamento para a doença. Famílias de pacientes brasileiros entraram na corrida pelo Dimebon. Mesmo sem sair do país, tentaram ir direto à fonte. Recorreram a conhecidos que moravam na Rússia, onde o remédio era vendido. Pediram ajuda a amigos dos conhecidos. Mesmo assim não conseguiram o remédio. Foram produzidos alguns poucos quilos do Dimebon - exclusivamente para os testes em andamento.





Por enquanto, o único estudo publicado, sob patrocínio da Medivation, sugere que o Dimebon poderia estabilizar os sintomas da doença - assim como já fazem as outras quatro drogas disponíveis no mercado para tratar o Alzheimer. Na pesquisa, os voluntários que tomaram 20 miligramas da droga, três vezes ao dia, tiveram uma melhora na memória, no raciocínio, no comportamento e na habilidade de desempenhar atividades diárias. Os pacientes medicados com comprimidos sem efeito clínico (placebo) pioraram.





Para medir quanto o desempenho dos pacientes havia melhorado, os pesquisadores usaram uma escala que leva em consideração a capacidade de uma pessoa se lembrar imediatamente de palavras, atender a comandos e compreender novas informações. O Dimebon parece ter sido mais benéfico num grupo específico, dos pacientes que estavam no estágio inicial da doença. Depois de 18 meses de tratamento, esses voluntários apresentaram uma diferença de quase dez pontos em relação ao grupo que tomou placebo. Mas, quando considerada a melhora de todos os voluntários da pesquisa, os pacientes que tomaram Dimebon por seis meses tiveram, na média, uma nota quatro pontos mais alta que os voluntários que consumiram o placebo. É uma melhora considerável. Mas não tão distante da obtida com drogas que já existem no mercado. Elas conseguem uma melhora entre dois e três pontos.





O que explica, então, tamanho entusiasmo em torno do Dimebon? A vantagem do remédio parece ser sua capacidade de manter os sintomas estáveis por mais tempo. Enquanto as drogas já aprovadas impedem o agravamento dos sintomas durante um ano, em média, o Dimebon conseguiria impedir o avanço por 18 meses - período em que os pesquisadores estudaram sua ação. Esse resultado seria reflexo de uma diferença importante do Dimebon em relação às drogas atuais para tratar o Alzheimer. Os medicamentos já disponíveis agem em sistemas do cérebro que conseguem melhorar a memória, o pensamento e o comportamento dos pacientes. Atuam apenas sobre os sintomas. Já o Dimebon, além desses efeitos, conseguiria agir nas causas da doença. E, por isso, impediria sua progressão.





Esse efeito seria possível porque o Dimebon parece ser capaz de proteger os neurônios saudáveis da destruição impingida pela doença. Ele impediria que os neurônios fossem mortos pela proteína betaamilóide, que se acredita estar relacionada à ocorrência do Alzheimer. "O Dimebon bloqueia os poros anormais de um componente das células que funciona como uma fábrica de energia para elas", afirma Rachelle Doody, autora principal do estudo publicado no Lancet e conselheira científica da Medivation. A proteína não conseguiria entrar nessas fábricas de energia e não mataria os neurônios.





Como o Alzheimer afeta o cérebro



A doença destrói os neurônios e afeta os circuitos cerebrais da aprendizagem e da memória





AS CAUSAS DA DOENÇA



Os pesquisadores acreditam que a proteína betaamilóide esteja relacionada à doença. Ela envolve os neurônios, criando placas que destroem partes do cérebro. Uma mudança química em outra proteína, a tau, também estaria ligada ao Alzheimer. Ela faz com que os microtúbulos por onde circulam os nutrientes dentro do neurônio se enovelem. Com isso, a célula morre



Apesar de os primeiros resultados serem promissores, ainda é cedo para considerar o remédio russo como um freio para o Alzheimer. "Eles sugerem claramente que o Dimebon está agindo sobre os sintomas da doença, o que não significa que ele também esteja protegendo os neurônios", diz o neurologista Eduardo Mutarelli, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. "Esse efeito precisa ser comprovado."





O estudo publicado há três meses foi considerado bem-feito pelos especialistas, mas só ele não reúne evidências suficientes para atestar os benefícios do Dimebon. A pesquisa foi feita com um grupo pequeno - 183 pessoas - e com características peculiares. A idade média, 68 anos, é inferior à tipicamente usada por pesquisadores em estudos sobre a doença. E o fato de todos os voluntários serem russos também poderia provocar uma distorção nos resultados. Os remédios empregados no tratamento do Alzheimer ainda não são muito consumidos no país porque são caros. Por isso, é possível que qualquer medicação surtisse um efeito notável no grupo. "Outras pesquisas são necessárias para comprovar que os resultados obtidos podem ser replicados em qualquer paciente", diz o neurologista Paulo Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.





O estudo para confirmar os benefícios do Dimebon em um número maior de pacientes já está em andamento. Conta com 525 pessoas, de várias nacionalidades. Há voluntários da Europa, da América do Sul e dos Estados Unidos. Se a eficácia for comprovada, a Pfizer e a Medivation esperam pedir em 2010 a aprovação para vender o Dimebon no mercado americano. O remédio estaria nas farmácias dos Estados Unidos a partir de 2011, não se sabe se com o mesmo nome ou com um novo.





Nesse cenário, o Dimebon chegaria ao mercado sem a comprovação do benefício que causou maior entusiasmo: seu efeito protetor sobre os neurônios e seu conseqüente potencial para retardar o avanço da doença. "Para isso, precisaríamos fazer um estudo com duração de 18 meses, e não de seis meses, como o que está em andamento", afirma a endocrinologista Lynn Seely, diretora-médica da Medivation. "Consideramos que para os pacientes o mais importante é ter o medicamento no mercado logo", diz Lynn. "Para eles, não importa como o remédio funciona."





Faltam pesquisas que comprovem os benefícios do Dimebon



num grande número de pacientes



O fato de o Dimebon ter sido desenvolvido a princípio com outra finalidade - controlar reações alérgicas - ajudou a ganhar tempo. Não foi necessário fazer novamente testes em animais para verificar os perigos que a medicação poderia oferecer. O remédio já havia passado por essas etapas quando foi aprovado.





Por essa economia de tempo e dinheiro, pesquisadores como o alemão Peer Bork, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular, afirmam que as bulas de drogas já aprovadas são um novo campo a ser explorado pela indústria farmacêutica. Não foram poucos os remédios descobertos dessa maneira. Uma das drogas já usadas no tratamento do Alzheimer, a memantina, também foi desenvolvida para outro uso: controlar o mal de Parkinson, que causa tremores e rigidez muscular.





O próprio Bork descobriu 13 novos usos para drogas antigas ao reavaliar 20 medicamentos. Constatou, inclusive, que um remédio usado em casos de Alzheimer, o donepezil, poderia tratar pacientes depressivos. "O problema é que geralmente as empresas têm boas patentes sobre as drogas e acabam desencorajando pesquisas para descobrir novas indicações", diz.





Apesar das dúvidas que ainda cercam o Dimebon, drogas com um princípio de ação similar ao seu parecem ser o futuro do tratamento do Alzheimer. Pelo menos, foi nesse tipo de medicação - que atua nos mecanismos iniciais da doença - que as grandes empresas farmacêuticas centraram seus esforços. A irlandesa Elan e a americana Wyeth iniciaram a última etapa de testes do anticorpo bapineuzumab, que conseguiria se ligar às placas da proteína betaamilóide e "limpar" o cérebro. Os resultados das pesquisas já concluídas, porém, deixaram dúvidas. Em um grupo de pacientes, o anticorpo não causou nenhuma melhora nos sintomas. A Eli Lilly está na segunda etapa dos estudos clínicos de seu anticorpo. E também já teria começado a última fase de pesquisa de uma medicação que impede a formação da proteína betaamilóide. Um laboratório menor, o TauRx Therapeutics, de Cingapura, investe na droga Rember. Ela conseguiria dissolver a proteína tau, que também estaria ligada ao Alzheimer, porque destrói os microtúbulos por onde circulam nutrientes para os neurônios.





Assim como o Dimebon, o Rember é conhecido por outros usos. Popularmente chamado de azul de metileno, é usado como corante. Agora, está na segunda etapa de pesquisas para provar sua ação contra o Alzheimer. Não deixa de ser irônico que em um tempo de modernas técnicas de bioengenharia e diante do potencial das células-tronco, capazes de reconstruir qualquer tecido do organismo, drogas de décadas atrás despontem como o que há de melhor na guerra contra o Alzheimer. As famílias, tão carentes de recursos eficazes, esperam que os estudos sejam acelerados. É uma luta contra o tempo.





A nova promessa



O Dimebon está nas últimas fases de teste com pacientes. Sua chegada às farmácias dos Estados Unidos está prevista para 2011







O QUE É



O Dimebon era usado na Rússia para tratar alergias até os anos 90. Estudos feitos em ratos sugeriram que ele melhoraria o aprendizado e a memória. Por isso, passou a ser estudado para o tratamento de Alzheimer





O QUE FAZ



Seria o primeiro medicamento capaz de proteger os neurônios e retardar a progressão da doença. Em um teste, o desempenho dos pacientes foi igual ou superior ao observado antes do tratamento





COMO FUNCIONA



O mecanismo de ação ainda não foi desvendado. Combinaria a ação das drogas que já existem para tratar a doença e que melhoram os sintomas. Além disso, protegeria a fábrica de energia das células, evitando a morte dos neurônios



Uma velha droga, uma nova função



Outros exemplos de remédios antigos que ganharam novos usos





VIAGRA



A Pfizer testava a droga para tratar pressão alta e angina (dor no peito causada pelo estreitamento dos vasos que irrigam o coração). Os pesquisadores notaram que os voluntários tinham ereções. Virou um sucesso no tratamento da impotência



ASPIRINA



Os efeitos analgésicos do ácido acetilsalicílico são conhecidos desde antes de Cristo - naquela época, o princípio ativo era obtido em folhas de salgueiro. Sua ação só foi explicada nos anos 70. Passou a ser indicado para evitar a recorrência de infartos



AZT



Era estudado desde a década de 1960 para combater células cancerígenas. Mas se tornou, em 1987, o primeiro medicamento contra a AIDS. Seu efeito ajudaria a inibir a multiplicação do vírus HIV no organismo



MEMANTINA



É a única droga recomendada para as fases mais graves do Alzheimer. Ajudaria a manter as funções cognitivas por mais tempo porque diminui os níveis de uma substância que intoxica os neurônios. Já era usado desde os anos 80 para tratar o mal de Parkinson



AMANTADINA



É usada para prevenir infecções respiratórias causadas pelo vírus influenza A, que contamina animais e raramente o homem. Em 1969, foi descoberto seu potencial para tratar os sintomas do Parkinson, diminuindo a rigidez muscular e os tremores